quinta-feira, 30 de agosto de 2007

O demônio.

"Il est l'heure de s'enivrer! Pour n'être pas les esclaves martyrisés du temps, enivrez-vous; enivrez-vous sans cesse! De vin, poésie ou de vertu, à votre guise." (Baudelaire)

Existiu um demônio que cansou de gritar na mente das pessoas. Ele passou a achar essa atividade enfadonha, pois tinha se tornado obrigatória, além do mais, estava ficando rouco, gradativamente, e, essa situação era incompatível com sua polida vaidade. Então, resolveu mudar de rotina e vivenciar outras experiências. O jovem demônio abandonou seus comuns e partiu para o mundo. Como já esperava, ninguém o compreendeu. Vagou por alguns dias pelo globo, e analisou tanto os seres animados quanto os inanimados, porém o pobre não conseguia se comunicar. Percebeu assim, a importância de aprender alguns idiomas. Além da linguagem da água e do fogo, optou por inglês e francês. Em poucos minutos, conseguiu o que queria, mas tamanha caminhada estava deixando-o com preguiça, ele começou a se associar com as andanças de Deus pela Terra enquanto vomitava o mundo. Essa idéia o enojou e o fez mudar de itinerário. Foi para uma cidade muito famosa, não me recordo o nome. Lá, o demônio sequer foi notado. Ele riu, ele se riu. Lançou mão da sua capacidade de absorver conhecimentos apenas com o olhar e apreendeu tudo que o cercava. Um ano se passou, e a jornada começou a ficar solitária, nessa altura, o demônio já tinha um conceito sólido a respeito dos humanos: eles eram estranhos. O coitado havia se contaminado, um ano foi suficiente para que a angústia e tormenta humana o abraçassem. Quando se deu conta disso, tomou um enorme susto, um susto tão grande que não cabia dentro de si e fez o chão tremer. O mais interessante foi que ele passou a se responsabilizar por tais angústias e tormentas, se sentiu culpado. “Era um demônio, eram os demônios”, pensou. Resolveu voltar para a mente das pessoas e falar isso para seus iguais. Uns acreditaram no amigo e começaram a partir como ele tinha feito. O resultado final era sempre o mesmo: eles se sentiam culpados, e um terremoto acontecia. Foi uma época de tremores pela Terra. Os que não encontraram fundamento naquele discurso, continuaram felizes com sua rotina de gritos e travessuras.

terça-feira, 21 de agosto de 2007

O menino e a menina.

Já não sou mais um todo, nunca fui.
Hoje quase morri: senti grande falta da parte que você levou.

Agora é presente, tá? Cuida dele e me empresta de vez em quando.
Psiu, é um pedaço do meu coração.

"Você vai longe, menino", dizia a vó com olhar de ternura.
"Você vai longe, menino", diz a menina de olhos fechados, quase chorando.

(E fala com ele que eu sei a respeito das duas estrelas que brilham distintamente, mas que a lua é a mesma. Fala também que da janela do 16º andar ela está linda.)

"E por essa parede passou um fantasma... deixando marcas de saudade".

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

A professora.

- Tia, agora tá certo?
- Ainda não, Maria. Repetiu com certa impaciência.

Ela quis matar a tia. Foi a primeira vez que essa vontade lhe ocorreu, a vontade de matar um ser humano. A tia percebeu tal desejo e reiterou seu desgosto por crianças. Resolveu sair da sala antes que o sadismo tomasse o ambiente e mais uma reunião com a diretora tivesse que ser marcada. Respirou fundo, quase não sentiu os movimentos do ar. O seu pulmão já estava dolorido há meses. Ainda assim, só queria fechar a porta, chegar até o fim do corredor e fumar um cigarro.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

O quebra-cabeças.

No início era assim:
Havia um sábio chinês e uma criança.

O sábio chinês montava um quebra-cabeças e a criança o observava com grande interesse. Eles estavam sentados na margem de um lago. A água era cristalina e não tinha barulho algum, como se os pássaros e o vento também estivessem interessados no desfecho da atividade exercida pelo velho. Ele decidiu dar uma volta para meditar. Como faltavam poucas peças, resolveu agrupá-las depois. Não existia pressa. Assim que o velho desapareceu do campo visual da criança, ela começou a chorar. Revoltada, jogou as pecinhas soltas no lago. O velho retornou e observou a cena com um doce sorriso. Quando ele se curvou para resgatar as pecinhas, uma correnteza repentina impediu que todas fossem recolhidas.

Hoje é assim:
O sábio chinês morreu. A criança cresceu e sempre vai a margem do lago procurar a peça que não foi encontrada.